Ivo Herzog levará à CBF petição contra José Maria Marin

Na próxima segunda-feira, 1º de abril, às 15h, Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pelos agentes da ditadura, entregará na sede da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a petição “Fora Marin!”. O documento cobra a saída de José Maria Marin da presidência da entidade em função de sua ligação com o regime totalitário que dominou o Brasil entre 1964 e 1985. Quase 54 mil pessoas já assinaram em apoio ao movimento. Ivo Herzog pretende ainda enviar cópias da petição à direção dos 20 principais clubes que participam do Campeonato Brasileiro e a todas as federações estaduais de futebol.
A petição será entregue à CBF no 49º aniversário do golpe civil-militar que instaurou a ditadura no Brasil, em 1964. Entre as figuras públicas que assinaram o documento estão Chico Buarque de Hollanda e Fernando Gabeira. Vladimir Herzog foi assassinado em 1975, quando estava ilegalmente detido nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Informações de Defesa Interna (DOI-Codi), controlado pelo Exército, em São Paulo. No texto em que justifica a petição, Ivo afirma que Marin ajudou a dar sustentação política à ditadura.

PRESSÃO E ELOGIOS

José Maria Marin era deputado estadual filiado à antiga Arena, partido que garantia fachada legal e sustentação política ao regime na época do assassinato de Vlado. Em 9 de outubro de 1975 Marin pediu providências às autoridades contra a atuação de supostos militantes de esquerda na TV Cultura, conforme está registrado literalmente no Diário Oficial de São Paulo; 16 dias depois, em 25 do mesmo mês, Herzog, que era diretor de telejornalismo da emissora, foi ilegalmente detido e assassinado, após apresentar-se voluntariamente ao DOI-Codi.
Além disso, um ano mais tarde, em 7 de outubro de 1976, Marin fez um vigoroso discurso de elogio ao delegado Sérgio Fleury, figura notória da repressão e violência da ditadura. Nesse pronunciamento, também reproduzido no Diário Oficial, afirmou, entre outras coisas, que “Sérgio Fleury se dedica ao máximo, sem medir esforços nem sacrifícios para honrar não apenas a polícia de São Paulo, mas acima de tudo seu título de delegado de polícia. Ele deveria ser uma fonte de orgulho para a população de nossa cidade”.
De acordo com Ivo Herzog, por causa dessa ligação com o autoritarismo, o presidente da CBF não tem condições de permanecer no cargo. “Ter Marin à frente da CBF agora, que estamos nas vésperas da Copa do Mundo no Brasil, é como se a Alemanha tivesse permitido que um membro do antigo partido nazista organizasse a Copa de 2006”.
Em circulação desde 19 de fevereiro, a petição está no site Avaaz, considerado “uma plataforma online que dá às pessoas ao redor do mundo o poder de iniciar e vencer campanhas em nível local, nacional e internacional”. O movimento ganhou força ainda maior nos últimos 20 dias, após José Maria Marin utilizar o site da CBF para se defender das acusações feitas contra ele.
A petição “Fora Marin!” está disponível no site:
http://www.avaaz.org/po/petition/Jose_Maria_Marin_Fora_da_CBF/.

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Esgarçamento da política – Frei Betto – 21 de março de 2013

Esgarçar: afastarem-se, soltarem-se os fios de um tecido (Caldas Aulete).
Quem é direita e esquerda hoje no Brasil? Eis um dilema shakespeariano. A direita, representada pelo DEM, se acerca do PMDB e, na palavra do senador Agripino Maia, propõe “oposição branda” ao governo Dilma Rousseff, que se considera de esquerda.
O PPS do deputado Roberto Freire, versão ao avesso do Partido Comunista, apoia as forças mais retrógradas da República. O PDS de Kassab e o PMDB de Sarney ficam em cima do muro, atentos para o lado em que sopram os ventos do poder.
Como considerar de esquerda quem elege Renan Calheiros presidente do Senado, e Henrique Alves, da Câmara dos Deputados. Você, caro(a) leitor(a), qualifica como de esquerda quem se apoia em Paulo Maluf, Fernando Collor de Melo e Sarney?
Desde muito jovem aprendi que a esquerda se rege por princípios, e a direita por interesses. E hoje, quem coloca os princípios acima dos interesses? Como você, que é de esquerda, se sente quando se depara com comunistas apoiando o texto do Código Florestal que tanto agrada à senadora Kátia Abreu?
A esquerda entrou em crise desde que Kruschov, líder supremo da União Soviética, denunciou os crimes de Stalin, em 1956. Naquela noite de fevereiro, vários dirigentes comunistas, profundamente decepcionados, puseram fim à própria vida.
Depois que Gorbachev entregou o socialismo na bandeja à Casa Branca, e a China adotou o capitalismo de Estado, a confusão só piorou.
Muitos ex-esquerdistas proclamam que superaram o maniqueísmo esquerda x direita, inadequado a esse mundo globalizado. Mera retórica para justificar o aburguesamento de quem, em nome da esquerda, alcançou um estilo de vida à imagem e semelhança dos poderosos da direita: muita mordomia e horror, como confessou o general Figueiredo, ao “cheiro de povo” (exceto na hora de angariar votos).
Ser de esquerda, hoje, é defender os direitos dos mais pobres, condenar a prevalência do capital sobre os direitos humanos, advogar uma sociedade onde haja, estruturalmente, partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.
O fato de alguém se dizer marxista não faz dele uma pessoa de esquerda, assim como o fato de ter fé e frequentar a igreja não faz de nenhum fiel um discípulo de Jesus. A teoria se conhece pela práxis, diz o marxismo. A árvore, pelos frutos, diz o Evangelho.
Se a prática é o critério da verdade, é muito fácil não confundir um militante de esquerda com um oportunista demagogo: basta conferir como se dá a relação dele com os movimentos populares, o apoio ao MST, a solidariedade à Revolução Cubana e à Revolução Bolivariana, a defesa de bandeiras progressistas, como a preservação ambiental, a união civil de homossexuais, o combate ao sionismo e a toda forma de discriminação.
Quem é de esquerda não vende a alma ao mercado.

Frei Betto é escritor, autor do romance histórico “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.

http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.

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Psicologia de barbeiro – Frei Betto – fevereiro de 2013

Ignoro se alguém, psicólogo ou cientista social, já se deu ao trabalho de investigar a psicologia dos salões de barbearia. Da infância à adolescência, frequentei o salão do Vicente, no bairro Savassi, em Belo Horizonte.

Estará vivo o Vicente? Figura! Alto, atlético, moreno, exalava sempre sorrisos e paciência. Estendia uma tábua entre os braços da cadeira (forrada de couro verdadeiro!), de modo a aproximar a cabeça da criança de sua ágil tesoura.

Meus irmãos mais novos deixaram o cabelo aos cuidados do Pedrinho, na rua Major Lopes (a dois quarteirões da casa da Dilminha, hoje presidente). Vicente fincou pé no mesmo salão da rua Pernambuco. Pedrinho, empreendedor, de fio em fio criou uma teia de barbearias, com cadeiras temáticas para os meninos se sentirem pilotando um carro de Fórmula 1 ou um batmóvel.

Conversa de barbearia de adultos é sempre amena. Todo barbeiro é um conciliador nato. Voz pausada, enquanto faz correr o pente, dançar a tesoura ou escorregar a navalha, vai tirando do cliente comentários e confidências.

Vai chover, diz o da barba. É, pelo jeito vem água aí, murmura o profissional com o pincel de barba à mão. Em seguida, senta o sitiante para aparar as costeletas: Já não há quem aguente essa seca. Pelo jeito, tão cedo não cai um pingo d’água. Com navalha afiada o barbeiro reduz dois centímetros da costeleta, e concorda: Lá onde moro logo, logo vai faltar água até para beber.

Não é nada fácil descobrir duas coisas em barbeiro: time para o qual torce e preferência partidária. Tomou assento o cabeludo, agasalhado pelo camisão impecavelmente branco, diga o que disser, o profissional jamais o contestará.

Nunca vi quebrarem o pau numa barbearia por discordância política. Felizmente, considerando a profusão de navalhas e tesouras em volta! Futebol é a mesma coisa: o barbeiro quase sempre torce pelo time do cliente. Você tem razão, o Corinthians se precipitou ao comprar o Pato. É, doutor, nós santistas ficaremos na pior no dia em que venderem o Neymar!

Um comentário aqui, uma observação ali, e o papo segue enquanto a chuva de fios depenados escurece o camisão.

Há outra dimensão, esta sim, prato cheio para os psicólogos. É a secreta motivação que leva muitos clientes à estofada cadeira móvel. Tive um vizinho que todas as manhãs entregava o rosto no salão da esquina. Perguntei-lhe um dia se a preguiça o impedia de cuidar da própria barba. Bem casado, pai de uma trinca de filhos, não escamoteou: Vou ao salão porque me faz bem o carinho do barbeiro. E não me leve a mal, frisou. Aquelas mãos suaves, a nuvem de creme suscitada pela dança do pincel, o perfume, tudo me faz lembrar o tempo de menino, quando meu avô me punha no colo e, com as costas das mãos, me acarinhava o rosto. Que mulher tem paciência de uma coisa dessa?

Outro amigo, careca a reluzir, apenas uns fiozinhos estendidos entre as orelhas e na nuca, me confidenciou quando indaguei por que frequentava o salão toda semana: Gosto de sentar na cadeira, sentir-me abraçado pelo camisão branco, percorrer os olhos em revistas antigas, escutar o leve ruído metálico da tesoura surpreendendo um fio aqui, outro ali, a extremidade do couro cabeludo acertada pela navalha e, por fim, o espanador de pelos e o borrifar da água de colônia…

Quem tem grana ou prestígio se dá o luxo de convocar barbeiro em domicílio. Lembro de um deputado que, sentado à varanda, entregue ao corte, revestido de tantas toalhas que mais parecia uma noiva gorda, insistia, a todo momento, em interromper a dança do pente e da tesoura para falar ao telefone, cujo fio se estendia desde a sala de visitas.

Um dia, irritado, o barbeiro, sem querer, feriu de leve sua excelência e foi despedido no ato. No mês seguinte, foi chamado à casa do parlamentar. Relutou. O cliente veio ao telefone, pediu desculpas e dobrou o valor a pagar.

Doutor, eu volto, disse o profissional, mas com uma condição: nada de telefone. O deputado consentiu. Em meio ao trabalho, o barbeiro perguntou por que havia sido chamado de volta. Ora, admitiu o político, tenho uma imagem a preservar e ninguém deixa o meu cabelo tão de acordo comigo mesmo como você.

É isso: muitos clientes mantêm fidelidade capilar a um barbeiro, como um cão ao seu dono. Tudo porque barba e cabelo são as únicas coisas que, com frequência, mudam onde reside o centro de nossa identidade: no rosto. Uma brusca mudança num ou noutro causa sempre estranhamento.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.

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Eleições de pontífices – As tradições do conclave – Frei Betto

No próximo conclave, os cardeais eleitores serão 61 europeus, 19 latino-americanos (dos quais 5 brasileiros), 14 norte-americanos, 11 africanos, 10 asiáticos e 1 da Oceania. O candidato eleito papa deve ter pelo menos 2/3 dos votos.

Esses números podem variar, dependendo da data de abertura do conclave. O cardeal alemão Walter Kasper, por exemplo, completa 80 anos a 5 de março. A Itália é o país com o maior número de eleitores, 21 cardeais.

A data do início do conclave é importante, porque a Semana Santa deste ano começa a 24 de março, dia da missa do Domingo de Ramos, seguida pela festa da Páscoa, a 31 de março.

Para se ter um novo papa antes do período litúrgico mais solene do calendário da Igreja, ele teria que ser empossado a 17 de março, devido à tradição de celebrar a missa de entronação em um domingo. Dado o prazo apertado, as especulações dão conta de que a votação teria início por volta de 10 de março.

Uma vez eleito, o novo papa deverá escolher um novo nome. Essa tradição data de 533, quando um padre chamado Mercúrio foi eleito bispo de Roma. Por se considerar que Mercúrio era um nome pagão, inadequado a um papa, ele adotou João II. Até então os papas eram simplesmente chamados por seu nome de batismo.

Bento XVI mereceu, em 2005, uma eleição rapidíssima, apenas 24 horas após o início do conclave, depois de quatro escrutínios.

No século XX, o conclave mais breve foi o que elegeu Pio XII, a 2 de março de 1939. Durou também 24 horas e três escrutínios. O mais longo elegeu Pio XI, a 6 de fevereiro de 1922, só decidido após quatro dias e 14 escrutínios.

João Paulo II, que dirigiu a Igreja Católica ao longo de 26 anos e cinco meses, foi eleito em 48 horas e oito escrutínios, a 16 de outubro de 1978. Precedeu-o João Paulo I, eleito em 24 horas e quatro escrutínios.

O pontificado mais longo da história da Igreja, à exceção do apóstolo Pedro, foi o papa Pio IX, que governou a Igreja de 1846 a 1878 – 31 anos, sete meses e 17 dias.

O primeiro conclave do século XX elegeu Pio X, hoje canonizado, em agosto de 1903, após quatro dias de votações. Também cotado como “papável”, o cardeal Mariano Rampolla, que fora secretário de Estado do papa Leão XIII, teve sua eleição vetada pelo imperador da Áustria, Francisco José I, que como monarca católico tinha o direito de intervir no conclave. Rampolla foi punido por sua política de respaldo às aspirações eslavas que fermentavam nos Bálcãs. Foi a última intromissão explícita do poder civil numa eleição papal.

Pio X foi sucedido por Bento XV, eleito a 3 de setembro de 1914, após três dias e dez escrutínios. Ratzinger adotou o nome de Bento XVI em homenagem ao pastor disposto a buscar a paz durante o período em que a Europa se encarniçava na Primeira Grande Guerra. Foi sucedido por Pio XI em 1922.

João XXIII, eleito aos 77 anos, a 28 de outubro de 1958, após três dias de conclave e dez escrutínios, ocupou o papado por apenas cinco anos e promoveu uma verdadeira revolução na Igreja Católica ao convocar, de surpresa, o Concílio Vaticano II.

O período mais longo com o trono de Pedro vazio durou três anos, sete meses e um dia, entre 26 de outubro de 304 (morte do papa Marcelino) e 27 de maio de 308 (eleição do papa Marcelo I).

O costume de trancar os cardeais-eleitores “com chaves” (conclave) teve início na cidade italiana de Viterbo, em 1271. O papa Clemente IV havia morrido em 1268, e passados quase três anos nada de os 17 cardeais elegerem o sucessor. O povo de Viterbo, para apressar a decisão, retirou o telhado do local em que os prelados se reuniam e obrigou-os a se alimentar apenas de pão e água. Logo foi eleito Gregório X, que normatizou o enclausuramento do colégio cardinalício.

Agora o isolamento dos cardeais visa a evitar intromissão do poder civil e vazamento dos debates que precedem os escrutínios. Porém, com as atuais tecnologias de captação de som à distância, não é improvável uma escuta remota do conclave.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

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Quaresma com T.S. Eliot – Frei Betto

Faz um tempo longo. Noviço no alto da serra, em Belo Horizonte, pedi ao mestre dispensar-me da liturgia de quarta-feira de Cinzas. Não que a soberba me assaltasse e eu quisesse evitar o selo das cinzas em minha fronte.

Do pó viemos, ao pó retornaremos, bem sei. Hoje, a astrofísica o confirma: somos todos feitos de pó das estrelas, fornos nos quais se cozinha, em diferentes consistências, toda a tabela periódica dos átomos que integram a matéria do Universo.

Aos 20 anos o mundo me parecia infinito. E minha vida, infinda. Para mim, o passado não existia, o presente impregnava-se de fé, o futuro se abria no par de portas destrancadas por todo o idealismo que me consumia a subjetividade.

No jardim do convento, junto à horta, da qual me tocava cuidar, recolhi-me em companhia dos versos de T. S. Eliot em Quarta-Feira de Cinzas. Porque eu também não espero voltar (e isso vale ainda hoje). Sobretudo agora que pertenço ao grupo etário da eterna idade – todos nós que ultrapassamos seis décadas de existência e, portanto, estamos mais próximos do fim de todos os mistérios.

“Não mais me empenho no empenho de tais coisas”. O verso de Eliot me soou como interrogação. A vida me ensinou que renúncias exigem convicções arraigadas. O jejum da quarta-feira de Cinzas é muito mais do que abster-se de carne. É esperar não conhecer “a vacilante glória da hora positiva”.

Como são desafiadoras as virtudes! “Ensinai-nos a estar postos em sossego”, rogava o poeta ecoando Teresa de Ávila. Não me atrevo à santidade. O jejum da quarta-feira de Cinzas ou, como outrora, exigido durante toda a Quaresma, é a coragem de dizer não a tudo isso que nos esgarça, retalha, fragmenta, como se múltiplos seres se atritassem no oco de nosso ser, confundindo-nos quanto ao rumo adequado a seguir.

“Alegro-me de serem as coisas o que são”. Ser do tamanho que se é. “E rogo a Deus porque desejo esquecer essas coisas que comigo por demais discuto, por demais explico”. Não seria o racionalismo exacerbado o principal inimigo do amor?

Ignoro se Eliot, atraído pela fé cristã, alcançou tamanha graça. Eu não. As múltiplas vozes seguem ressoando dentro de mim. Apenas me socorro no enigma intranscendente da fé e na embriaguez mística das liturgias.

Penso agora nos quase 250 jovens calcinados na boate Kiss, em Santa Maria. O que faziam ali tantos jovens? Buscavam o essencial: liturgia.

A vida é insuportavelmente atrelada ao reino da necessidade. E anseia pela gratuidade. Não se vai a uma danceteria apenas em busca de música, dança, bebida e paquera. Tudo isso pode ser mais confortavelmente desfrutado na intimidade.

O que move centenas de pessoas à festa – na danceteria e na roça, no baile a rigor e no Carnaval – é a imprescindível liturgia que nos faz transcender do reino da necessidade à esfera lúdica, onírica, mistérica, da gratuidade. A celebração intensa, coletiva, comunitária, a alegre confraternização que permite o descanso da razão (“senhora dos silêncios”, escreveu Eliot) e o alvorecer da emoção: “fala sem palavra e palavra sem fala”.

Naquele jardim conventual, em companhia do poeta, intuí a importância de jejuar de tudo aquilo que não alimenta o espírito. E deixar que esse se liberte no ímpeto glutão de tudo isso que ressoa no esplendor do coração, como o sentimento de pertença à natureza, à família humana, a Deus – matérias-primas da oração.

Por que então pedi dispensa da liturgia comunitária na capela e me isolei no jardim com Eliot? Não recomendou Jesus evitarmos multiplicar palavras ao orar? “Se a palavra perdida se perdeu, se a palavra gasta se gastou, se a palavra inaudita e inexpressa inaudita e inexpressa permanece, então, inexpressa a palavra, ainda perdura o inaudito Verbo (…) o silente Verbo”.

É o que convém buscar na Quaresma e que as vítimas de Santa Maria já alcançaram: o silêncio no Verbo. Eis o paradoxo da fé e o sentido desse tempo litúrgico que precede a Páscoa.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

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Duplo poder papal – Frei Betto – 27 de fevereiro de 2013

Bento XVI, ao renunciar, não perde o nome pontifício nem o direito de continuar no Vaticano, em cujas dependências já optou por permanecer após a eleição de seu sucessor, em março próximo.

Como papa renunciante, Joseph Ratzinger poderia escolher, como sua nova residência, qualquer domicílio da Igreja Católica em um dos cinco continentes.

Alguns arcebispos aposentados recolhem-se a mosteiros, como dom Marcelo Carvalheira, arcebispo emérito da Paraíba, que vive com os beneditinos de Olinda (PE); ou em casa própria, afastado do burburinho urbano, como é o caso do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, que mora em Taboão da Serra (SP).

Ao decidir permanecer no Vaticano, Bento XVI corre o risco de criar uma situação constrangedora. Ninguém duvida de que será ele o principal cabo eleitoral do futuro papa. Ratzinger nomeou 56% dos atuais membros do Colégio Cardinalício. E seu gesto de humildade, ao renunciar, o credencia a concorrer a um futuro processo de canonização.

Com certeza passa pela cabeça de Ratzinger um ou dois nomes, entre os 209 cardeais (dos quais apenas 115 votarão), que considere mais aptos a assumir a direção da Igreja. Só um ingênuo supõe que o papa renunciante fica isento frente a uma eleição tão delicada e importante. Dela depende o êxito da missão confiada por Jesus a Pedro e os apóstolos.

Os cardeais-eleitores não são obrigados a seguir possível sugestão de Bento XVI. Cada um tem o direito e o dever de votar de acordo com a própria consciência. Mas um bom número dos que dele receberam o chapéu cardinalício acredita ter com ele uma dívida de gratidão. Mesmo porque não gostariam de ver a barca de Pedro tomar rumos inesperados, como ousou João XXIII ao ser eleito, em 1958, para suceder Pio XII.

Penso que o pontificado do futuro papa terá duas etapas bem nítidas: a primeira, enquanto Bento XVI viver. A segunda, após a morte do pontífice renunciante.

Enquanto Bento XVI estiver vivo dificilmente o novo papa tocará em temas considerados, hoje, tabus (e proibitivos) por seu antecessor: fim do celibato obrigatório, acesso das mulheres ao sacerdócio, uso de preservativo, direito de relação sexual sem intenção de procriar, aplicação de células-troncos, união de homossexuais etc.

Nenhum debate sobre tais assuntos será permitido, ainda que prossiga entre os católicos a dupla moral: a defendida pela doutrina oficial e a praticada pelos fiéis.

Morto Bento XVI, e supondo que seu sucessor lhe sobreviva (o destino surpreende. Lembrem-se de João Paulo I, falecido 33 dias após ter sido eleito), então se iniciará a segunda etapa do novo pontificado.

Livre da sombra de Bento XVI (ou do superego, diria Freud), o novo papa se sentirá à vontade para imprimir aos rumos da Igreja a direção que lhe parecer conveniente.

Convém lembrar que o papado é a única monarquia absoluta que resta no Ocidente. Isso significa que o pontífice romano não está sujeito a nenhuma instância humana que o possa questionar, julgar ou admoestar.

Ao me perguntarem se prevejo candidaturas preferenciais, os chamados “papabiles”, fujo da questão regional, como a hipótese de se eleger um latino-americano, dado que o nosso continente abriga, atualmente, o maior número de católicos, 48,75%.

É óbvio que os italianos gostariam de retomar o monopólio do papado, mantido em suas mãos ao longo de 456 anos (1522-1978). Nesse caso, arrisco o palpite de que a disputa será entre o atual camerlengo, o cardeal Tarciso Bertone, e o arcebispo de Milão, Ângelo Scola.

Bertone tem a seu favor ser homem de confiança de Bento XVI. Contra, a má administração da Santa Sé, cujas finanças pecam pela falta de transparência e frequentes casos de corrupção. Scola tem a seu favor ser renomado filósofo e teólogo, e também poliglota. Contra, tido como excessivamente conservador.

O único palpite que me parece viável é que o futuro papa provavelmente será um homem com menos de 70 anos. O que restringe consideravelmente a lista dos virtuais candidatos.

Roma já não suporta tantos conclaves em tão curto período de tempo. Eu mesmo me surpreendo ao constatar que, em quase sete décadas de existência, assisti à eleição de cinco papas e, agora, acompanharei a sexta.

O tempo urge, o mundo já ingressa na pós-modernidade, e a Igreja Católica ainda reluta em efetivamente aplicar as decisões do Concílio Vaticano II e admitir que fora da Igreja também há salvação.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus (Rocco), entre outros livros, e assessor de movimentos sociais.

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Papas também renunciam – Frei Betto

“O papa não adoece, até que morra”, diz um provérbio romano. João Paulo II, homem midiático, não temeu expor–se enfermo aos olhos do mundo. Agora, Bento XVI dá um testemunho de humildade e, admitindo as limitações de seu precário estado de saúde, anuncia que renunciará no último dia de fevereiro.

Na história da Igreja quatro papas renunciaram ao ministério petrino: Bento IX (1º de maio de 1045), Gregório VI (20 de dezembro de 1046), Celestino V (13 de dezembro de 1294) e Gregório XII (4 de Julho de 1415). Bento XVI será o quinto, a partir de 28 de fevereiro.

Sagrado papa aos 20 anos, em 1032, Bento IX não primava pela ética e muito menos pela moral. Sua vida era um escândalo para a Igreja. O povo romano expulsou-o da cidade em 1044. No ano seguinte, voltou a ocupar o trono de Pedro e, meses depois, renunciou. Retornou ao papado em 1047, do qual foi deposto definitivamente no mesmo ano.

João Graciano, padrinho de Bento IX, pagou considerável quantia de dinheiro para que o afilhado lhe cedesse o lugar. Eleito papa em maio de 1045, adotou o nome de Gregório VI e governou a Igreja até dezembro de 1046, quando o afilhado o derrubou sob acusação de simonia.

Morto Nicolau IV, em 1292, cardeais italianos e franceses fizeram do consistório arena de disputas pelo poder, movidos mais por interesses políticos que pelas luzes do Espírito Santo. Após dois anos e três meses de impasse na eleição do novo papa, Pedro Morrone, eremita italiano, de sua caverna nas montanhas enviou carta ao consistório, instigando-o a não abusar da paciência divina.

Os cardeais viram na carta um sinal de Deus e decidiram fazer do monge o novo chefe da Igreja. Pedro Morrone relutou, não queria abandonar sua vida de pobreza e silêncio, mas os prelados o convenceram de que o consenso em torno de seu nome tiraria a Igreja do impasse.

Com o nome de Celestino V, tornou-se papa em agosto de 1294. Menos de quatro meses depois, a politicagem vaticana o levou ao limite de sua resistência. Em consulta a seus eleitores, levantou a pergunta-tabu: pode o papa renunciar?

O colégio cardinalício não se opôs e, numa bula histórica, Morrone justificou-se, alegando deixar o trono de Pedro para salvar sua saúde física e espiritual. A 13 de dezembro do mesmo ano retornou à solidão contemplativa nas montanhas. Vinte anos depois foi canonizado, exaltado como exemplo de santidade. A 19 de maio a Igreja celebra a festa de São Pedro Celestino.

Também o papa Gregório XII renunciou, no início do século XV – período em que três papas reivindicavam legitimidade – para evitar que o cisma na Igreja se aprofundasse.

Joseph Ratzinger, atual Bento XVI, é sobretudo um teólogo. Enquanto papa, não deixou de escrever, tanto que lançou uma trilogia sobre Jesus. São raros os papas-autores, sem considerarmos os documentos pontifícios, como encíclicas, bulas e alocuções, quase sempre redigidos por assessores.

Em geral, intelectuais não se dão bem com funções de poder. As questões administrativas parecem enfadonhas diante de tantos livros por ler e escrever. O político quer administrar; o intelectual, criar. Ratzinger talvez tenha decidido reservar o que lhe resta de tempo de vida para recolher-se à oração e à produção teológica.

Inicia-se agora a mais sutil campanha eleitoral: a da eleição do sucessor de Bento XVI. Entre os atuais 209 cardeais da Igreja Católica, 118 têm direito a voto, pois ainda não completaram 80 anos.

Entre os eleitores figuram cinco brasileiros: Geraldo Magella, arcebispo emérito de Salvador (79); Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo (78); Raymundo Damasceno, cardeal-arcebispo de Aparecida (76); João Braz Avis, ex-arcebispo de Brasília, atualmente em Roma como Prefeito da Congregação para a Vida Consagrada (64); e Odilo Scherer, cardeal-arcebispo de São Paulo (63).

Com certeza o novo papa fará sua primeira viagem pontifícia ao Rio de Janeiro, em julho, para a Jornada Mundial da Juventude.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

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Que tipo de papa a Igreja precisa? As tensões internas da Igreja atual.

Leonardo Boff, teólogo e filósofo 

Não me proponho a apresentar um balanço do pontificado de Bento XVI, coisa que foi feita com competência por outros. Para os leitores talvez seja mais interessante conhecer melhor uma tensão sempre viva dentro da Igreja e que marca o perfil de cada Papa. A questão central é esta: qual a posição e qual a missão da Igreja no mundo?
Antecipamos dizendo que uma concepção equilibrada deve assentar-se sobre duas pilastras fundamentais: o Reino e o mundo. O Reino é a mensagem central de Jesus, sua utopia de uma revolução absoluta que reconcilia a criação consigo mesma e com Deus. O mundo é o lugar onde a Igreja realiza seu serviço ao Reino e onde ela mesma se constrói. Se pensarmos a Igreja demasiadamente ligada ao Reino, corre-se o risco de espiritualização e de idealismo. Se demasiadamente próxima do mundo, incorre-se na tentação da mundanização e da politização. Importa saber articular Reino-Mundo-Igreja. Ela pertence ao Reino e também ao mundo. Possui uma dimensão histórica com suas contradições e outra transcendente.
Como viver essa tensão dentro do mundo e da história? Apresentam-se dois modelos diferentes e, por vezes, conflitantes: o do testemunho e o do diálogo.
O modelo do testemunho afirma com convicção: temos o depósito da fé, dentro do qual estão todas as verdades necessárias para a salvação; temos os sacramentos, que comunicam graça; temos uma moral bem definida; temos a certeza de que a Igreja Católica é a Igreja de Cristo, a única verdadeira; temos o Papa, que goza de infalibilidade em questões de fé e moral; temos uma hierarquia que governa o povo fiel; e temos a promessa de assistência permanente do Espírito Santo. Isso tem que ser testemunhado face a um mundo que não sabe para onde vai e que por si mesmo jamais alcançará a salvação. Ele terá que passar pela mediação da Igreja, sem a qual não há salvação.
Os cristãos desse modelo, desde Papas até os simples fiéis, se sentem imbuídos de uma missão salvadora única. Nisso são fundamentalistas e pouco dados ao diálogo. Para que dialogar? Já temos tudo. O diálogo é para facilitar a conversão e é um gesto de civilidade.
O modelo do diálogo parte de outros pressupostos: o Reino é maior do que a Igreja e conhece também uma realização secular, sempre onde há verdade, amor e justiça; o Cristo ressuscitado possui dimensões cósmicas e empurra a evolução para um fim bom; o Espírito está sempre presente na história e nas pessoas do bem; Ele chega antes do missionário, pois estava nos povos na forma de solidariedade, amor e compaixão. Deus nunca abandonou os seus e a todos oferece chance de salvação, pois os tirou de seu coração para um dia viverem felizes no Reino dos libertos. A missão da Igreja é ser sinal dessa história de Deus dentro da história humana e um instrumento de sua implementação junto com outros caminhos espirituais. Se a realidade tanto religiosa quanto secular está empapada de Deus devemos todos dialogar: trocar, aprender uns dos outros e tornar a caminhada humana rumo à promessa feliz, mais fácil e mais segura.
O primeiro modelo do testemunho é da Igreja da tradição, que promoveu as missões na África, na Ásia e na América Latina, sendo até cúmplice em nome do testemunho da dizimação e dominação de muitos povos originários, africanos e asiáticos. Era o modelo do Papa João Paulo II que corria o mundo, empunhando a cruz como testemunho de que aí vinha a salvação. Era o modelo, mais radicalizado ainda, de Bento XVI, que negou o título de “Igreja” às igrejas evangélicas, ofendendo-as duramente; atacou diretamente a modernidade, pois a via negativamente como relativista e secularista. Logicamente não lhe negou todos os valores, mas via neles como fonte a fé cristã. Reduziu a Igreja a uma ilha isolada ou a uma fortaleza, cercada de inimigos por todos os lados contra os quais importa se defender.
O modelo do diálogo é do Concílio Vaticano II, de Paulo VI e de Medellin e de Puebla na América Latina. Viam o cristianismo não como um depósito, sistema fechado com o risco de ficar fossilizado, mas como fonte de águas vivas e cristalinas que podem ser canalizadas por muitos condutos culturais, um lugar de aprendizado mútuo porque todos são portadores do Espírito Criador e da essência do sonho de Jesus.
O primeiro modelo, do testemunho, assustou muitos cristãos, que se sentiam infantilizados e desvalorizados em seus saberes profissionais; não sentiam mais a Igreja como um lar espiritual e, desconsolados, se afastavam da instituição, mas não do Cristianismo como valor e utopia generosa de Jesus.
O segundo modelo, do diálogo, aproximou a muitos, pois se sentiam em casa, ajudando a construir uma Igreja-aprendiz e aberta ao diálogo com todos. O efeito era o sentimento de liberdade e de criatividade. Assim vale a pena ser cristão.
Esse modelo do diálogo se faz urgente caso a instituição-Igreja queira sair da crise em que se meteu e que atingiu seu ponto de honra: a moralidade (os pedófilos), a espiritualidade, a falta de transparência (roubo de documentos secretos e outros problemas graves no Banco do Vaticano), e a perda de fiéis, sobretudo entre a juventude.
Devemos discernir com inteligência o que atualmente melhor serve à mensagem cristã no interior de uma crise ecológica e social de gravíssimas consequências. O problema central do mundo não é a Igreja (cada vez mais europeia e branca), mas o futuro da Mãe Terra, da vida e da nossa civilização. Como a Igreja ajuda nessa travessia? Só dialogando e somando forças com todos.

Leonardo Boff é autor de Igreja: carisma e poder, livro ajuizado pelo então então cardeal Joseph Ratzinger.

ps: a perseguição rendeu ao então frei Leonardo Boff um ano de “silêncio obsequioso”, ou seja, durante um ano não pôde escrever, dar aulas e palestras. Além disso, chamado a Roma, frei Leonardo foi colocado, em seu interrogatório, na mesma cadeira na qual se sentou Galileu Galilei, no início do século 17 (por volta de 1611), condenado como herege por defender as ideias de Copérnico (heliocentrismo, o Sol como centro do Universo, e não mais as de Aristóteles, como a Terra sendo o centro do Universo).

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Mino Carta e “A imbecilização do Brasil”- Editorial da Carta Capital, 1º/2/2013

“Creio que a Globo ocupe a vanguarda desta operação de imbecilização coletiva, de espectro infindo”

Há muito tempo o Brasil não produz escritores como Guimarães Rosa ou Gilberto Freyre. Há muito tempo o Brasil não produz pintores como Candido Portinari. Há muito tempo o Brasil não produz historiadores como Raymundo Faoro. Há muito tempo o Brasil não produz polivalentes cultores da ironia como Nelson Rodrigues. Há muito tempo o Brasil não produz jornalistas como Claudio Abramo, e mesmo repórteres como Rubem Braga e Joel Silveira. Há muito tempo…
Os derradeiros, notáveis intérpretes da cultura brasileira já passaram dos 60 anos, quando não dos 70, como Alfredo Bosi ou Ariano Suassuna ou Paulo Mendes da Rocha. Sobra no mais um deserto de oásis raros e até inesperados. Como o filme O Som ao Redor, de Kleber Mendonça, que acaba de ser lançado, para os nossos encantos e surpresa.
Nos últimos dez anos o País experimentou inegáveis progressos econômicos e sociais, e a história ensina que estes, quando ocorrem, costumam coincidir com avanços culturais. Vale sublinhar, está claro, que o novo consumidor não adquire automaticamente a consciência da cidadania. Houve, de resto, e por exemplo, progressos em termos de educação, de ensino público? Muito pelo contrário.
E houve, decerto, algo pior, o esforço concentrado dos senhores da casa-grande no sentido de manter a maioria no limbo, caso não fosse possível segurá-la debaixo do tacão. Neste nosso limbo terrestre a ignorância é comum a todos, mas, obviamente, o poder pertence a poucos, certos de que lhes cabe por direito divino. Indispensável à tarefa, a contribuição do mais afiado instrumento à disposição, a mídia nativa. Não é que não tenha servido ao poder desde sempre. No entanto, nas últimas décadas cumpriu seu papel destrutivo com truculência nunca dantes navegada.
Falemos, contudo, de amenidades do vídeo. De saída, para encaminhar a conversa. Falemos do Big Brother Brasil, das lutas do MMA e do UFC, dos programas de auditório, de toda uma produção destinada a educar o povo brasileiro, sem falar das telenovelas, de hábito empenhadas em mostrar uma sociedade inexistente, integrada por seres sem sombra. Deste ponto de vista, a Globo tem sido de uma eficácia insuperável.
O espetáculo de vulgaridade e ignorância oferecido no vídeo não tem similares mundo afora, enquanto eu me colho a recordar os programas de rádio que ouvia, adolescente, graciosas, adoráveis peças de museu, como a PRK30, ou anos verdolengos habitados pelos magistrais shows de Chico Anysio. Cito exemplos, mas há outros. Creio que a Globo ocupe a vanguarda dessa operação de imbecilização coletiva, de espectro infindo, na sua capacidade de incluir a todos, do primeiro ao último andar da escada social.
O trabalho da imprensa é mais sutil, pontiagudo como o buril do ourives. Visa à minoria, além dos donos do poder-real, que, além do mais, ditam o pensamento único, fixam-lhe os limites e determinam suas formas de expressão. O alvo é a chamada classe média alta, os aspirantes, a segunda turma da classe A, o creme que não chegou ao creme do creme. E classe B também. Leitores, em primeiro lugar, dos editoriais e colunas destacadas dos jornalões, e da Veja, a inefável semanal da Editora Abril. Alguns remediados entram na dança, precipitados na exibição, de verdade inadequada para eles.
Aqui está a buchado canhão midiático. Em geral, fiéis da casa-grande encarada como meta de chegada radiosa, mesmo quando ancorada, em termos paulistanos, às margens do Rio Pinheiros, o formidável esgoto ao ar livre. E, em geral, inabilitados ao exercício do espírito crítico. Quem ainda o pratica, passa de espanto a espanto, e o maior, se admissível a classificação, é que os próprios editorialistas, colunistas, articulistas etc. etc. acabem por acreditar nos enredos ficcionais tecidos por eles próprios, quando não nas mentiras assacadas com heroica impavidez.
O deserto cultural em que vivemos tem largas e evidentes explicações, entre elas, a lassidão de quem teria condições de resistir. Agrada-me, de todo modo, o relativo otimismo de Alfredo Bosi, que enriquece esta edição. Mesmo em épocas medíocres pode medrar o gênio, diz ele, ainda que isto me lembre a Península Ibérica, terra de grandes personagens solitárias em lugar de escolas do saber. Um músico e poeta italiano do século passado, Fabrizio de André, cantou: “Nada nasce dos diamantes, do estrume nascem as flores”. E do deserto?

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Apreensão no campo – dom Tomás Balduíno, publicado na Folha de S.Paulo, 23 de janeiro de 2013

Eis o quadro: o pequeno agricultor Juarez Vieira foi despejado de sua terra, em 2002, no município tocantinense de Campos Lindos, por 15 policiais em manutenção de posse acionada por Kátia Abreu. Juarez desfilou, sob a mira dos militares, com sua mulher e seus dez filhos, em direção à periferia de alguma cidade.
O caso acima não é isolado. O governador Siqueira Campos decretou de “utilidade pública”, em 1996, uma área de 105 mil hectares em Campos Lindos. Logo em 1999, uns fazendeiros foram aí contemplados com áreas de 1,2 mil hectares, por R$ 8 o hectare. A lista dos felizardos fora preparada pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins, presidida por Kátia Abreu (PSD-TO), então deputada federal pelo ex-PFL.
O irmão dela, Luiz Alfredo Abreu, conseguiu uma área do mesmo tamanho. Emiliano Botelho, presidente da Companhia de Promoção Agrícola, ficou com 1,7 mil hectares. Juarez não foi o único injustiçado. Do outro lado da cerca, ficaram várias famílias expulsas das terras por elas ocupadas e trabalhadas havia 40 anos. Uma descarada grilagem!
Campos Lindos, antes realmente lindos, viraram uma triste monocultura de soja, com total destruição do cerrado para o enriquecimento de uma pequena minoria. No Mapa da Pobreza e Desigualdade divulgado em 2007, o município apareceu como o mais pobre do país. Segundo o IBGE, 84% da população vivia na pobreza, dos quais 62,4% em estado de indigência.
Outro irmão da senadora Kátia Abreu, André Luiz Abreu, teve sua empresa envolvida na exploração de trabalho escravo. A Superintendência Regional de Trabalho e Emprego do Tocantins libertou, em áreas de eucaliptais e carvoarias de propriedade dele, 56 pessoas vivendo em condições degradantes, no trabalho exaustivo e na servidão por dívida.
Com os povos indígenas do Brasil, Kátia Abreu, senadora pelo Estado do Tocantins e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), tem tido uma raivosa e nefasta atuação.
Com efeito, ela vem agindo junto ao governo federal para garantir que as condicionantes impostas pelo Supremo no julgamento da demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol sejam estendidas, de qualquer forma, aos demais procedimentos demarcatórios.
Com a bancada ruralista, ela pressionou a Advocacia-Geral da União (AGU), especialmente o ministro Luís Inácio Adams. Prova disso foi a audiência na AGU, em novembro de 2011, na qual entregou, ao lado do senador Waldemir Moka (PMDB-MS), documento propondo a criação de norma sobre a demarcação de terras indígenas em todo o país.
O ministro Luís Adams se deixou levar e assinou a desastrosa portaria nº 303, de 16/7/12. Kátia Abreu, ao tomar conhecimento desse ato, desabafou exultante: “Com a nova portaria, o ministro Luís Adams mostrou sensibilidade e elevou o campo brasileiro a um novo patamar de segurança jurídica”.
Até mesmo com relação à terra de posse imemorial do povo xavante de Marãiwatsèdè, ao norte do Mato Grosso, que ganhou em todas as instâncias do Judiciário o reconhecimento de que são terras indígenas, Kátia Abreu assinou nota, como presidente da CNA, xingando os índios de “invasores”.
Concluindo, as lideranças camponesas e indígenas estão muito apreensivas com o estranho poder econômico, político, classista, concentracionista e cruel detido por essa mulher que, segundo dizem, está para ser ministra de Dilma Rousseff. E se perguntam: “Não é isso o Poder do Mal?”. No Evangelho, Jesus ensinou aos discípulos a enfrentar o Poder do Mal, recomendando-lhes: “Esta espécie de Poder só se enfrenta pela oração e pelo jejum” (Cf. Mt 17,21).
Paulo Balduíno de Sousa Décio, dom Tomás Balduino, tem 90, é mestre em teologia, é bispo emérito da cidade de Goiás e conselheiro permanente da Comissão Pastoral da Terra.


PAULO BALDUINO DE SOUSA DÉCIO, dom Tomás Balduino, 90, mestre em teologia, é bispo emérito da cidade de Goiás e conselheiro permanente da Comissão Pastoral da Terra

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